SUA MENSAGEM

O Sapato novo

Dona Armandinha tinha anotado tudo para o primeiro dia de novena¹, não podia faltar nada, vinha até um padre de fora: “sabe como é... viúva decente tem que estar com tudo arrumado”, faltava só o sapato que estava consertando em Zuza Sapateiro², o homem já enrolava a viúva há dias. Sábado era o último prazo que ela havia dado ao Enrolado. Era manhãzinha, o homem ainda estava na cama quando ela chegou aos gritos na sua porta.
*


Becos     &     Boatos. 
Por que a história deixa marcas


- Zuza seu imprestável tá pronta a encomenda?
- D. Mandinha a senhora nem imagina o que aconteceu, meu querosene acabou e não deu para trabalhar a noite...
- E agora seu pulha, o que vou fazer? A novena é hoje, eu te mato.

Zuza olhou para o lado e viu um sapato novinho. Era de D. Mocinha. A coitada nem teve o gosto de usar, tinha deixado lá pra arrumar, tava apertando, mas a morte  levou-a antes.

- Faz o seguinte D. Mandinha, vendo pra senhora esse par novinho que veio das Europa³, só está meio empoeirado mas...
- Mentiroso, salafrário, e desde quando você anda nas Europa?
- Conheço só de nome, vez em quando aparece uns caixeiros viajante4  por aqui, e acabo comprando. Vendo pra senhora pelo mesmo preço que comprei: Cr$ 200,00 cruzeiros5.
- Sei não, o bicho é bonito, mas, mas... mediante a situação, acho que vou ficar, mas só dou 150,00, e ainda assim no final do mês, quando sai meu dinheiro, aceita?
- Fechado!

A partir daquele dia, Zuza não pensou em outra coisa senão nos  150 cruzeiros.

"Eita, falta só quinze dias, ah! meus 150,  vou comprar um chapéu de massa, um terno novo, um perfume... ah! A Rua da Baderna6 que me espere. Ê Rosa, te quero cheirosa." Sonhava Zuza.

"Falta só três dias, ah! Bia, você é a melhor de todas..."

Finalmente chega o tão sonhado dia. Zuza animado, logo cedinho abre a porta da sapataria e ver uma movimentação na porta de D. Armandinha, logo lhe chega a notícia: a viúva acabara de morrer.

O Sapateiro  foi ao velório  a noite, e em lágrimas com o coração cortado,  viu o sapato novo nos pés da defunta. Suspirou, abanou a cabeça e lembrou de Rosa.

(Irineu Magalhães)

Nota:

[1] As novenas aqui em Lapa, até a década de 1980, eram grandes eventos religiosos, e mobilizava boa parte da população. 
[2] Zuza Sapateiro morava e trabalhava no beco (Travessa Marechal Deodoro), esse sapateiro morreu "empanzinado" (em outra história conto como foi).
[3] "Das Europa" ou "Das Oropas" como era popularmente chamado, era um termo bastante usado pelo povo até a década de 1970, que se referia aos países europeus, ou de origem estrangeira.
[4] Caixeiro Viajante, era um vendedor profissional que saía de cidade em cidade, vendendo produtos diversos. Muito popular até a década de 1960.
[5] Cruzeiro, moeda brasileira que entrou em vigor na década de 1940 e foi até início dos anos 90.
[6] Rua da Baderna, Centro, atualmente Rua J.J. Seabra. O nome "Baderna" já diz tudo, era onde tinha um pequeno aglomerado de bordéis na época, a noite era tudo festa.

*Imagem ilustrativa.


Envie seu causo, conto, crônicas para irineumagalhaes@ymail.com não se preocupe com a formatação, gramática, etc.  é só contar a história que faço os arranjos, e publico dando crédito à sua pessoa.

Por Irineu Magalhães.
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2 comentários:

  1. Manoel Gomes da Silva Neto6 de outubro de 2013 às 04:06

    Muito interessante grande amigo,sou Lapense,na minha adolescência lembro do Sapateiro "Zuza"da Rua da Baderna,na época este signatário morava na Rua Duque de Caxias,atualmente Avenida Duque de Caxias,até hoje moram aí meus Genitores Sr Ladislau Reis,carinhosamente conhecido por "Bilau" e D.Marcina. Parabéns.

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    1. Olá meu caro! Conheço Seu Ladislau, fomos vizinhos muitos anos, eu morava onde é hoje o foto estrela.

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